Minhas raízes

Minhas raízes
Uruguaiana

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Contos da Caserna

A LANCHA
Corria o ano de 1962, o Nicácio servia como Fuzileiro Naval no Destacamento de Fuzileiros Navais na cidade de São Borja.
Entre tantas atividades inerentes a função dos Fuzileiros, tinha uma que era disputada por todos e que seguidamente eles trocavam entre si as escalas ou tiravam o serviço em dupla.
Essa missão era o de guarda da lancha no rio Uruguai.
A lancha: Bem a lancha era um meio de transporte fluvial para diligências ou patrulhas que eram realizadas no rio que faz divisa do Brasil com a Argentina.
A patrulha é claro eram feitas no lado brasileiro, a não ser o que o responsável às vezes sem saber ou intencionalmente ultrapassasse a linha imaginária que dividia os dois Países.
Quando o comando estava com o Cb. Paiol, bem ai tudo podia acontecer, porque ele não tinha limites em suas ações.
As patrulhas tinham o objetivo de inibir o contrabando ou descaminho de café, açúcar e pneus para o lado Argentino e farinha, cebola, azeite e carne para o lado brasileiro.
Fora esses detalhes, a missão mais importante era a soberania nacional sob as águas fluviais brasileiras e o que levava a todos que participavam ter uma grande honra em desempenhar tal missão.
Além disso, quando a lancha não estava em patrulha, ficava ancorada na costa brasileira, num pequeno porto sem trapiches que ficava nos fundos do destacamento.
Todos os dias tinham fuzileiros escalados para permanecer na lancha com o objetivo de guardá-la e protegê-la de qualquer dano.
Ai começava os problemas da história que estamos contando.
A lancha, além de todos os apetrechos correspondentes a uma unidade militar, tinha objetos normais e inerentes a uma atividade fluvial e militar, indispensáveis a uma missão como aquela.
Ela, a lancha, possuía em sua proa um pequeno alojamento com duas camas, uma a bombordo e outra a estibordo, essa comodidade, possibilitava que sempre que o Fuzileiro que estivesse de serviço, se lhe agradasse, podia levar um companheiro para não ficar isolado na missão.
Dificilmente ficava só um, sempre havia um companheiro e para que não ficassem os dois sozinhos, era normal que as namoradas de ambos os acompanhassem, o que acabava complicando tudo, porque afinal, a lancha era uma unidade militar e era expressamente proibido pelos regulamentos militares que civis permanecessem em áreas militares, principalmente se fossem do sexo feminino.
É claro que o sacrifício das namoradas era para não deixar seus amores sozinhos em tão árdua missão.
As enchentes, sempre foram da normalidade da região, mas quando o rio estava cheio, realmente a missão era complicada e muitas vezes arriscadas.
Numa dessas enchentes o rio estava de barranca a barranca, a correnteza muito forte, com grandes toras descendo rapidamente, a água turva e grandes remansos, a lancha ancorada a mais de 50 metros da margem, sem parar, balançando-se nas ondas de mais de metro de altura.
O Nicácio era o responsável pela lancha e sentiu que todo cuidado era pouco para chegar até ela.
O pequeno trajeto era feito numa pequena chalana movida a remos o que para os jovens e experientes Fuzileiros era moleza.
Só que:
Tanto o Nicácio como seu colega Munhoz que nessa noite seria seu segurança, estavam acompanhados, cada com uma namorada.
O Nicácio ainda lembra-se do nome da sua, ou melhor, do seu apelido, ‘’Cigana’’ a outra que acompanhava seu colega, não tem a menor idéia de quem fosse.
As duas menores, mas naqueles tempos, não tinha conselho tutelar e transar com menores não era tão rigorosa como é agora.
As duas estavam com muito medo de fazer o pequeno trajeto e os dois Fuzileiros pressentiam o perigo e estavam não com medo, mas apreensivos e sabiam que a mínima vacilada e daria um grande problema.
O Nicácio, primeiro levou até a lancha o Fuzileiro Munhoz e sua namorada, voltando para levar a Cigana que tinha ficado na barranca.
O retorno foi feito com alguma dificuldade, a correnteza estava muito forte e o vento fazia as ondas balançar perigosamente a pequena embarcação.
O Munhoz estava parado na popa da lancha observando a minha manobra pra encostar a chalana a estibordo, local que seria mais prático para a Cigana fazer o transbordo
A Cigana tinha embaixo do braço esquerdo duas mantas dobradas, quando a chalana encostou ela segurou-se na lancha, com este movimento a chalana abriu um pouco deixando um vácuo de mais ou menos um metro e meio entre as embarcações, era só ela puxar firme e a chalana se aproximaria da lancha o que facilitaria a operação.
O Nicácio que viu o pavor nos olhos de sua companheira pressentiu o que poderia acontecer se ela soltasse a lancha.
Tentando evitar o pior, falou firme, mas sem gritar: não solta a lancha.
O alerta funcionou completamente ao contrário.
Ela com os olhos esbugalhados de pavor, ao ouvir a advertência, largou a lancha e imediatamente caiu na água, com o movimento brusco, a chalana desequilibrou quase virando , fazendo com que o Nicácio em vez de prestar atenção na Cigana , se preocupasse em não deixar a chalana virar.
A Cigana ao cair permaneceu por uma fração de segundos a flor d’água agarrada as duas mantas e logo a seguir afundou num redemoinho de água e espumas.
Quando apareceu, foi a uns cinco metros de onde tinha caído, já descendo a forte correnteza e afundando novamente.
O Nicácio deixa neste relato um agradecimento ao Cb. Batista e sua turma de instrutores.
Valeu os exercícios e instruções do curso de formação de Sd. Fuzileiro Naval.
1º. – Não se apavorar, manter a calma;
2º. – Estudar a situação; e
3º. –Entrar em ação imediatamente.
É claro que tudo isso, tem que ser feito em frações de segundos e atos sincronizados.
O Nicácio que permaneceu na chalana, quando a dominou remou em direção a moça o Munhoz, simplesmente solou o cinto NA com o coldre e a pistola no convés da lancha e caiu na água.
Quando ela veio a tona pela segunda vez o Munhoz já estava a seu lado e segurou-a firme, porque se afundasse a terceira vez, teriam que procurar o seu corpo em vez de salvá-la.
Enquanto isso, a namorada do Munhoz que presenciou todos os acontecimentos trágicos, entrou em desespero no convés da lancha, sozinha e apavorada começou a gritar num ataque estéril de pavor e medo, fazendo com isso que todos os ribeirinhos ( pessoas que moravam nas proximidades do rio ) se aglomerassem nas barrancas do rio para ver o que estava acontecendo.
Os dois que socorriam a Cigana, nada viram, a preocupação deles no momento era tirar a moça da água para depois socorrerem a outra.
Como sentiu que não seria possível colocá-la dentro da chalana, o Munhoz segurou-se numa de suas bordas com a moça desmaiada em um dos braços enquanto o Nicácio remava procurando aproximar-se da margem do rio, o que foi conseguido a uns duzentos metros de onde tinha acontecido o acidente.
Para sorte dos dois Fuzileiros e o que evitou mais um desastre, foi que passava uma balsa de toras, o que era comum em grandes cheias, era madeira que descia o rio desde Santa Catarina para as madeireiras de Uruguaiana.
O balseiro ao assistir o desenrolar dos fatos e vendo aquela mulher que gritava apavorada, determinou que uma das lanchas socorresse a moça, só que:
Sendo conhecedor das leis de Portos Rios e Canais, pelo rádio solicitou permissão a Capitania dos Portos para aproximar-se da lancha que era uma unidade militar e a aproximação só com permissão das autoridades.
Imaginem a confusão que se meteram os dois Fuzileiros envolvidos na segurança da lancha.
A Capitania dos Portos ao ser comunicada e não entendo nada do que aquele cidadão pedia, entrou em contato com o Comando do Grupamento de Fuzileiros Navais em Uruguaiana, este por conseqüência procurou o Comando do Destacamento de Fuzileiros Navais de São Borja para entender que confusão era essa.
Só que todos estes contatos foram efetivados no dia seguinte, porque em 1962 não havia a facilidade de hoje nas comunicações, naqueles tempos, era só telegrafia ou os telefones pretos e com manivelas que funcionavam quando queriam.
O Nicácio e o Munhoz sem terem a mínima idéia do que acontecia nos bastidores, estavam apavorados porque quando chegaram a margem com a Cigana, após terem usado todas as técnicas que conheciam, a guria não reagia de maneira nenhuma, chegando a pensarem que ela esta morta.
Sem saberem que rumo tomar, e ao serem informados que a outra moça tinha sido resgata da lancha e estava em terra firme, resolveram levar a Cigana nas costas para a sede do Destacamento que nessas alturas já estava em grande movimento.
La chegando, foram orientados a colocarem a moça na enfermaria que o enfermeiro Swfiter tomara as providencias para reanimá-la, o que foi feito logo em enseguida e partir daí, os dois foram recolhidos preso para o alojamento e o Sargento de dia providenciou no encaminhamento da Cigana para o hospital da cidade.
O Swfiter que era um marinheiro e não fuzileiro, o que era comum nos quartéis da Marinha, especialistas na área de recursos humanos geralmente eram marinheiros da gola.
RESUMO DA HISTÓRIA
O Nicácio e o Munhoz responderam uma sindicância pela transgressão disciplinar que cometeram.
O Nicácio que era o que estava de serviço tomou 10 dias de prisão rigorosa, cumpridos na cadeia do 2º. Regimento de Infantaria do Exercito em São Borja.
O Munhoz que não estava de serviço mas também cometeu transgressão disciplinar, tomou 5 dias de prisão simples e os dois foram obrigados a pagar dois cobertores para completar a carga do almoxarife do Destacamento.
Passados 90 dias do acontecimento destes fatos, chegou uma mensagem via rádio do Grupamento de Fuzileiros de Uruguaiana, convocando os que haviam passado na seleção para o curso de Cabo na Ilha do Governador no Rio de Janeiro.
O nome do Nicácio constava da lista, só que com uma tarja vermelha, a punição sofrida não permitiu que ele realizasse a viagem com os outros.
Portanto o Nicácio perdeu a sua oportunidade de graduar-se, por ter sido o responsável direto pelo quase afogamento da Cigana.

Caxias do Sul, 06.11.2008


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